Um lugar de tentativas...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Memórias de menina-moça

Carmim a boca em tintas
Rosa o laço, rósea ninfa
Luva os lábios, a pupila, o vestido
O reflexo sempre, lago e pérola
Meia o passo e o sapato
Meia-lua avenida e ilha
E o par de olhos renda
Finalmente, na esquina
O ansioso namorado

Da criação...

Quem me criou não me conhecia. Teria inventado outra coisa se o soubesse. Uma boneca, uma árvore, um cesto. Um incesto. Eu se fosse palavra era melhor. Soubesse disso aquele que me criou teria feito de mim um alfarrábio. Brindemos aos deuses! Esses se criaram do restolho invisível do nada e se esticaram do fermento-prece dos homens, da crença-pão. Dança sobre meus flancos uma semente igerminada. Resta então inventar-me. Faltam os lápis de cor.

Poema tem acento




O tempo das palavras
Mais me consola
Que o tempo das coisas
O segundo extasiado do verbo
Seu pulso veloz

Tenta-me a hora sagrada do nome
De boca cheia, caneta astuta
Emendo-as, palavras
Em seu tempo febril
Meu tempo inventado.
Debochadamente advérbicas,
Apocalípticas
Revelo num corte transversal
Um artigo
Dois pronomes
E me entrego.

Organizadas de jeito estranho ao meu corpo,
Único e completo
SÍ-LA-BA PA-LA-VRA PO-E-MA
Eu, SO-ZI-NHA

Palavras como cadeias
A química do poeta
É de carbônica devoção
Eu e meus orgasmos plásticos
de grande E pequeno porte
O poema termina
E calo um soluço de abstinência
Ausência tem 3 ou 4 sílabas?

A última partida


A rainha desfilou sua palidez de mortal elegância e proferiu o golpe final. O negro rei, do alto de sua coroa inerte não pediu misericórdia. Xeque-mate. E o fim justifica os meios. A tropa de peões, bispos e cavalos é cuidadosamente alinhada novamente. Na guerra e no sono alguma coisa retrocede, algo volta ao seu estado original. Meticulosamente, em madeira e nobreza, eles vão tomando seus antigos postos. Peões na linha de frente. Cavalos vizinhos de bispos. Torres sempre nas esquinas, e um rei ao centro: isca e razão de tudo. Pretos e brancos, cada um para o seu lado. Depois da batalha, eles são novamente motivo de decoração. Um bom tabuleiro de xadrez tem alma. Assim tinha sido a última partida entre dois bons amigos. Sabiam que o seria. Quando ela tocou a campainha as 5 da manhã do sábado, sugerindo uma partida de xadrez, ele emergiu de seu sono para o que parecia uma fantasia Carroliana. O chapeleiro louco viria dançar sobre seu tabuleiro e a rainha anunciaria imperativa, que lhe cortassem a cabeça. Naquela madrugada, as pupilas da moça eram de um rosa-flamingo e seus dedos frios não se articularam em cumprimento.
Há alguns meses o fim estava de pernas descobertas. Era claro para os dois a impossibilidade daquela amizade. Ela sempre teria sentimentos. Ele, sempre teria aquele par de óculos confusos, que dificultavam ver a causa a fundo. Uma amizade é impossível quando se têm tanto a dizer. Todas as boas amizades se alimentam do silêncio. “Eu ainda gosto de você”. E ali estava ela, num vestido branco de festa, pedindo uma última partida de xadrez. Afinal de contas, ele era a razão pela qual ela tinha aprendido a jogar. O anfitrião aceitou e sentaram-se a mesa de jantar. O vidro opaco das peças tilintava, desafiando o silêncio de seus ventríloquos. A dama de branco teve a vantagem. Lançou seus cavalos contra o inimigo. O coração ameaçava-lhe os pulsos por dentro do vestido. Se ao menos ela ganhasse, poderia impressioná-lo, e se despedir da amizade como o elo forte. “Pelo menos no xadrez, por deus!” pensava entre um movimento e outro. Pois naquela noite, para a surpresa da moça, as estrelas tinham se alinhado de tal forma, que ela ganhava espaço inédito contra seu opositor sentimental. Nunca ela tinha feito tão eficiente uso de tantas estratégias diferentes, e seus soldados alvos avançavam impiedosos contra os dele. Investidas diagonais, verticais e horizontais a levavam para a inevitável glória. O rapaz, ainda sonolento e surpreso com a visita noturna, lutava com as poucas peças que lhe sobravam.
Quando o relógio marcou 5:32, um coração partido planejava seu último decreto real. O rei inimigo possuía a esse momento apenas uma torre e alguns bufões. Mas foi aproximadamente as 5:36, que a sorte da dama-primeira mudou. Seu antigo amante lançou-se novamente em ofensiva, e pôs-se logo a promover cruzadas contra as peças vitais da moça. Ia o rapaz, munido apenas de uma corajosa torre. E ao fim de alguns minutos já divertia-se colocando a adversária em xeque. “Eu acho que te amei. Eu não sei...”. Longo silêncio. “Xeque-mate”, ele anunciou.

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Eu... Objeto de fronteiras.
Meu nome e sua mancha.
Minha existência em símbolo.
Minha carne, nova.
O que de mim se gera.
Os pecados, as mãos e os pés.
O caminhar...

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Poema pra menino


Do alto da página, planava...
O nariz metido entre as duas faces de couro.
Cinco versos estatelados agonizavam no meio da página,
(in)significados.
Todos de uma audácia quase ofensiva
O olho do menino via o poema que via o menino
Mas o poema olhava torto, fazia charme
Na extremidade do papel, um amasso lhe lembrava uma concha
Pensou em mar e no cachorro morrido
Em camarão que se compra na praia
E em vários montes de areia,
Bons de enfiar os dedos até o fim

Castigo de hoje : 40 minutos de leitura,
nos domínios de Dona Ofélia.
Bibliotecária e pecadora,
Uma esfinge em tom pastel,
As unhas roídas em vermelho maduro batiam na mesa
O tique fazia estalinhos, bonitos de ouvir
Pensou em peixe na cheia, fazendo um barulho assim
Peixe era fácil de entender.
Poema não era.


Trinta minutos depois: anistia
Dona Ofélia em voz e gesto,
Um decreto.
E o menino de volta em sala.
Dona Ofélia era fácil de entender.
Poema é que não era...

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Balada das coisas

Balada das coisas

Me concede essa dança?
A poucos metros de minhas canelas
Além do verniz e das toalhas
A nuvem dança sozinha
E todo mundo vê...

Um menino de olhos anêmicos faz graça...
da ginga da nuvem.
"Tá andano manhê...andô...eu prestei atenção..."
E a nuvem, nem ai pro menino.
Segue seu número solo.

Eu, que não tenho tanta audácia
faço versos só na espera
de seduzir de vez um par.

Receita


Receita

Farinha de trigo, açúcar e leite
Quebre dois ovos
Adicione canela
O tempo cuidará do resto
Fez de dona Alcina, doceira da família,
Um monumento de vestido feio
As mãos antes ágeis, de bater a clara
De enrolar e esculpir,
Agora trêmulas
A receita do tempo chega ao fim.
Dois olhos-cor-de-mel fazem ver...
Os pêssegos dos anos
Desejo em calda, já esquecido.
Agora o sorriso de avó,
Aquece as noites de figo
E cobre os pecados de quem já foi moça.