Um lugar de tentativas...

quarta-feira, 10 de março de 2010

Moleque



Existia na periferia do Colina Alta um moleque esquivo, cheio de dentes e de mal-intento. Manga fora de época. Desses que caíram no mundo por um desgosto de deus. Endiabrado como os sentimentos das gentes, tinha uns braços mais longos que as pernas. Os joelhos sempre em carne-viva, e o cansaço do trabalho na feira com a vó, não impediam o menino de gerenciar e executar coisa ruim. No repertório de endemoniações estava: amarrar pedra em rabo de gato, esconder o sutiã da mãe (O bom. O outro era bege e feio), botar lagartixa no congelador e estragar de propósito o vídeo-game novo do primo Oswaldo. A tal máquina era coisa cara que tinha vindo do estrangeiro, onde o pai de Oswaldo agora morava, trabalhando de garçom. A peste dia sim dia não terminava na vara de amora, instrumento de trabalho de qualquer mãe com quatro filhos machos ali no Colina Alta. A surra de vara era tradição de família e garantia de solução em 90% dos casos. O moleque de que se fala aqui, era naturalmente uma exceção. Os castigos, vez ou outra recebia, e não faziam jeito. Só temia o pai, que nunca estava por perto, sendo caminhoneiro de carteira assinada para uma empresa alimentícia. Fato que a mãe contava com orgulho nas reuniões da igreja. Rezava pelo marido solto no mundo, e pelo filho. Ler dez salmos toda noite e uma oração pra Jesus, e assim talvez salvasse o menino da danação eterna.
Lá por meados do feriado da Páscoa, dona Arlete anunciou que a inquilina nova vinha de mudança pro barracão dos fundos. Tão logo achou sorte no negócio de produtos diet, a antiga moradora pegou seus três meninos (um de cada pai) e mudou –se para um bairro que diziam ser melhor. Lá passavam duas linhas de ônibus e estavam pra inaugurar um centro esportivo, coisa de primeiro mundo. E foi assim que no domingo de páscoa um caminhão abriu camiho, sob um sol apocalíptico, na porta da casa de dona Arlete. Desceram uma mulher, sua filha e um monossilábico motorista. Algumas indicações depois, e carregaram para dentro do barraco um sofá verde-vômito, uma TV e dois colchões. A mulher, de boas curvas, acenou timidamente para dona Arlete dando sinal de ok, e perdeu-se no interior da construção de dois cômodos. Não se ouviu nada por horas, até que no desatar da noite a menina saiu pro portão. Tinha a pele mais escura que a da mãe e um par de olhos anêmicos. Pra compensar, tinha os cabelos lisos (sem artifícios) e as pernas muito longas. Uma garça no meio da noite. E que surpresa não teve ela quando parou na sua frente um tipinho baixo, enfeitiçado pela beleza esguia de uma menina feia. Era o próprio, diabo de Colina Alta, que sem entender sua reação, encarava Miriam. Ousou balbuciar algum gracejo, mas sua esperteza de menino era pouca para as necessidades de um coração de mulher. Miriam, com seus 13 anos, não era de dar-se a moleques, ainda mais aquele, encardido e todo ralado. Sorrateiro, fingiu que procurava era pipa caída no quintal dela. Escapou.
Todos os dias, por semanas, o menino ia para a porta esperar Miriam fazer sua aparição aristocrática. Enchia-se de esperança quando seus olhos fundos pareciam ter encontrado os dele por um segundo, e se desapontava quando algum figurinha do bairro aparecia de sorrisos e conversa mole com Mirinha, os quais ela costumava retribuir bem. Alguns dias acordava inflado de coragem e cheio de coisas mirabolantes pra dizer pra ela. Outros dias era visitado por um pessimismo que nunca tinha conhecido antes. Amor doía, mais que prendedor em rabo de gato. A última vez que pensou em Mirinha foi numa terça-feira. Depois do bolo, do café e do fumo a avó deu pra contar estórias de moça. O pai do menino chegou no meio do caso de como a vó tinha fugido do vô Tonho, que não batia bem da cabeça. O pai pousou a mão direita no ombro magricelo do menino e disse num estalo: “E você, nunca vai falar com aquela mulatinha não? Pensa que não te vi, olhando pra ela ontem? Vira homem Carlinhos. Essa família nunca teve covardes não.”. O menino murchou feito um maracujá, e a avó retomou a contança de onde tinha parado. Depois desse dia o moleque nunca mais deu notícia de diabrura alguma.

2 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. ahh (suspiros) os contos de Lídia,
    que prazer é preencher uma quinta-feira com uma leitura tão agrádavel. Me apaixono por você, novamente, a cada vírgula lida.

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