Um lugar de tentativas...

sábado, 17 de julho de 2010

Vocação



Encheu o copo em dois dedos, deu um gole rápido, e pousou-o no colo, vazio. Na sala reverberaram o tilintar do copo e o medo do silêncio. Mas não era fraco. Filho de mãe costureira, sem nunca ter conhecido pai, parecia já ter nascido pronto pra vida. Quando de muito menino, os moleques da rua danavam a mexer com ele, dizendo que a mãe era mulher da vida. Sendo o mais alto do bando, batia neles todos, e depois iam tomar banho de rio, que rancor nessa idade é de memória curta. Triste também não era. As crianças lhe gostavam muito. Seguiam-lhe até o cupinzeiro, no escuro da noite, para ouvir estórias de fantasmas. Gostava de manter o suspense até o final, e na hora da aparição da assombração tinha sempre um truque, para assustar a meninada, que saia correndo feito boi desgarrado. A última vez que estiveram lá, pagou um menino para acender uma luz branca lá no meio do pasto. A platéia tanto se assustou que nunca mais voltaram lá.
Ao seu lado, uma caixa. Abre-a com a decência ritualística com que se fala com os mortos. Cartas de Maria Lúcia (Deus sabe que bocas beija agora), o terço da mãe, as figurinhas da copa de 70, uma nota velha de dinheiro e dois botões. A caixa tinha emergido num canto da casa de forma quase esotérica. Vinte e cinco anos em uma casa e tão pouco se acumula, tão pouco vale lembrar. No fundo da caixa, apanhou uma foto antiga. Ele e o palhaço Rodrigues sorriem como quem guarda um segredo. Naquele mês a cidade havia recebido a visita do curso itinerante de artes circenses. Estava convencido dali para frente de que seria um palhaço, e dos melhores. As crianças, que antes se assustavam com os contos macabros, agora davam risadas dos números aparvalhados de um palhaço principiante. Sempre fora de boa retórica, e aprendera com a mãe o bom humor. Faltava só um nariz vermelho, que a tia prometera trazer quando fosse a cidade próxima, em duas semanas. De nada adiantou o presente, pois quando o acessório chegou, já estava envolvido em novas atividades. Decidira que ser mágico era bem mais interessante, e desde então se dedicava a leitura de revistas sobre o assunto, ganhadas do avô. Começou com truques pequenos, a maioria incluindo cartas. Entretanto, no mês seguinte já se metia a tirar moedas de trás de orelhas, coelhos de chapéus e dizem que fez até desaparecer Toninho (que por pura coincidência era o mesmo envolvido na aparição fantasmagórica do cupinzeiro). Mas o truque mais bonito,
que até hoje Pirinópolis se lembra, ainda estava por vir. Numa manhã chamou todos os colegas para a pracinha, e apareceu fantasiado dos pés a cabeça, como um Merlin do cerrado. Anunciou que tinha uma vara de pescar e uma bacia com água. Pediu a todos que checassem a vara e a bacia, a procura de truques ou possíveis segredos de mágico. Depois que todos aprovaram o instrumento, colocou a bacia com água a uma distância de 10 metros e dentro dela lançou a vara. Minutos se passaram, e quando um ou outro disperso já se preparava para partir, puxou-a com força. Os olhares atônitos das crianças fitavam o impossível: um peixe enorme (do tipo que nem se via naquela região) estava na ponta da vara. Assim que entenderam a maestria do truque, puseram-se a aplaudí-lo como a um Houdini, Dias depois, Dona Aurélia decidiu que o filho não se meteria mais com bruxarias, e jogou fora todos os livros de mágica. Alguns anos depois, a mãe foi ter com a mágica do além-mundo, e ele mudou-se para Goiânia. Tornou-se advogado, casou-se com Maria Lúcia e morou vinte e cinco anos na casa do Centro. Maria Lúcia era dez anos mais jovem do que ele, e deixou-o há outros dez.
O homem olha agora para a foto do menino. É tomado por um sentimento repentino de felicidade. Lembra-se satisfeito, que por muitos anos perguntavam-lhe como tinha executado o truque, e ele respondia apenas: “O peixe morre pela boca.”

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