“Vendo”, e um número de telefone. Os dizeres no papelão semi-desintegrado
pela ação do tempo mais pareciam pistas em um esquecido joguete de caça ao tesouro.
Não cabia acreditar que depois de tanto tempo ainda não tivesse sido vendido. O
longo corpo escarlate tinha agora floreios de um laranja-ferrugem, e os
imponentes faróis, como olhos cansados, pareciam me reconhecer. Aquele velho
caminhão tinha estado lá durante toda a minha infância, estacionado no mesmo
lugar como uma estátua de lata. E quando nos mudamos da Rua das Begônias, nos
despedimos do estranho objeto como que de um amigo. Eu, Pedro e Augusto
costumávamos pular em sua carroceria e brincar por horas. Ali tínhamos uma
torre de proteção contra a invasão dos terríveis bárbaros (os meninos da rua de
cima). A madeira envelhecida forjava os portões de um forte e nós três revezávamos
o posto de guarda, em meio a um ou outro desentendimento hierárquico. Houve uma
manhã de férias em que Luiza
desafiou Pedro a entrar na cabine. O pobre, tendo esgotado todas as suas estratégias
de charlatanismo e improvisação, foi obrigado a cumprir o trato. Às 3 da tarde
as crianças se reuniram em volta do veículo e assistiram a Pedro girar a
ruidosa trava de aço que levava ao esqueleto do monstro. Não podíamos enxergar
o que lá se passava, pois a cabine era protegida por uma cortina de veludo. Por
3 minutos ficamos em silêncio, respirações suspensas, até que enfim ele emergiu
do cubículo triunfante. Disse ter encontrado lá o fantasma do velho dono do
caminhão, que lhe contou muitas histórias fantásticas, as quais ele jamais
repetiria, já que não nos considerava maduros o suficiente para
recebê-las. O fantasma ordenara ainda que
déssemos a ele (Pedro) todas as nossas bolinhas de gude e que lhe pagássemos sorvete
até a próxima lua minguante. Por alguma
razão além da compreensão humana, a parte das bolinhas e do sorvete foi
violentamente ignorada pelo grupo. No entanto, passamos de fato algumas noites
no caminhão, na esperança de reencontrar o fantasmagórico motorista. O espírito
nunca veio, mas o beijo que Pedro recebeu de Luiza, ali mesmo na carroceria,
lhe pareceu naquele momento particularmente sobrenatural.
Os pais e mães do bairro nunca gostaram de nosso apego ao
caminhão-fantasma, e como é da natureza dos adultos, ignoravam as fabulosas
utilidades que um caminhão abandonado poderia ter (ainda mais um como aquele).
Viviam reclamando de sua corpulenta presença. O caminhão era tema recorrente em
pontos de ônibus, reuniões de pais e ceias de Natal. “Olá, bom dia.”... “E esse
tempo hein? Parece que vai chover.”... “O caminhão continua lá. Aquilo é um
monumento de lixo em nossa rua! Precisamos fazer algo a respeito.” Mas nunca
faziam, exceto Dona Ruth, que certa vez ligou para a prefeitura. Os técnicos vieram
algumas semanas depois. Mergulhados em semblantes sérios e compenetrados,
investigaram o caminhão como cientistas aguardando a explosão que sucede uma reação
química. Mediram diligentemente várias coisas com suas fitas luminosas, e
depois de muito confabular, deram o veredicto à Dona Ruth. O caminhão não
estava infringindo nenhuma lei específica e não havia nada que pudessem fazer a
respeito. Assim, o caminhão havia permanecido incólume até esse momento.
Meus olhos se voltaram para a velha insígnia em metal: um pássaro usando
uma coroa e cuspindo fogo. Ou seria um leão rugindo? Pouco importava. Busquei
no bolso o aparelho celular. Inseri o número sem hesitação e esperei por
resposta do outro lado.
- Alô?
- Alô! O caminhão...ainda está a venda?
- 30 mil. Sem descontos nem trocas.
- Onde te encontro pra fechar negócio?
- Onde te encontro pra fechar negócio?
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