Um lugar de tentativas...

terça-feira, 10 de julho de 2012

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“Vendo”, e um número de telefone. Os dizeres no papelão semi-desintegrado pela ação do tempo mais pareciam pistas em um esquecido joguete de caça ao tesouro. Não cabia acreditar que depois de tanto tempo ainda não tivesse sido vendido. O longo corpo escarlate tinha agora floreios de um laranja-ferrugem, e os imponentes faróis, como olhos cansados, pareciam me reconhecer. Aquele velho caminhão tinha estado lá durante toda a minha infância, estacionado no mesmo lugar como uma estátua de lata. E quando nos mudamos da Rua das Begônias, nos despedimos do estranho objeto como que de um amigo. Eu, Pedro e Augusto costumávamos pular em sua carroceria e brincar por horas. Ali tínhamos uma torre de proteção contra a invasão dos terríveis bárbaros (os meninos da rua de cima). A madeira envelhecida forjava os portões de um forte e nós três revezávamos o posto de guarda, em meio a um ou outro desentendimento hierárquico. Houve uma manhã de férias em que Luiza desafiou Pedro a entrar na cabine. O pobre, tendo esgotado todas as suas estratégias de charlatanismo e improvisação, foi obrigado a cumprir o trato. Às 3 da tarde as crianças se reuniram em volta do veículo e assistiram a Pedro girar a ruidosa trava de aço que levava ao esqueleto do monstro. Não podíamos enxergar o que lá se passava, pois a cabine era protegida por uma cortina de veludo. Por 3 minutos ficamos em silêncio, respirações suspensas, até que enfim ele emergiu do cubículo triunfante. Disse ter encontrado lá o fantasma do velho dono do caminhão, que lhe contou muitas histórias fantásticas, as quais ele jamais repetiria, já que não nos considerava maduros o suficiente para recebê-las.  O fantasma ordenara ainda que déssemos a ele (Pedro) todas as nossas bolinhas de gude e que lhe pagássemos sorvete até a próxima lua minguante.  Por alguma razão além da compreensão humana, a parte das bolinhas e do sorvete foi violentamente ignorada pelo grupo. No entanto, passamos de fato algumas noites no caminhão, na esperança de reencontrar o fantasmagórico motorista. O espírito nunca veio, mas o beijo que Pedro recebeu de Luiza, ali mesmo na carroceria, lhe pareceu naquele momento particularmente sobrenatural.
Os pais e mães do bairro nunca gostaram de nosso apego ao caminhão-fantasma, e como é da natureza dos adultos, ignoravam as fabulosas utilidades que um caminhão abandonado poderia ter (ainda mais um como aquele). Viviam reclamando de sua corpulenta presença. O caminhão era tema recorrente em pontos de ônibus, reuniões de pais e ceias de Natal. “Olá, bom dia.”... “E esse tempo hein? Parece que vai chover.”... “O caminhão continua lá. Aquilo é um monumento de lixo em nossa rua! Precisamos fazer algo a respeito.” Mas nunca faziam, exceto Dona Ruth, que certa vez ligou para a prefeitura. Os técnicos vieram algumas semanas depois. Mergulhados em semblantes sérios e compenetrados, investigaram o caminhão como cientistas aguardando a explosão que sucede uma reação química. Mediram diligentemente várias coisas com suas fitas luminosas, e depois de muito confabular, deram o veredicto à Dona Ruth. O caminhão não estava infringindo nenhuma lei específica e não havia nada que pudessem fazer a respeito. Assim, o caminhão havia permanecido incólume até esse momento.
Meus olhos se voltaram para a velha insígnia em metal: um pássaro usando uma coroa e cuspindo fogo. Ou seria um leão rugindo? Pouco importava. Busquei no bolso o aparelho celular. Inseri o número sem hesitação e esperei por resposta do outro lado.
-  Alô?
-  Alô!  O caminhão...ainda está a venda?
- 30 mil. Sem descontos nem trocas.
  - Onde te encontro pra fechar negócio?













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